Há uns tempos, o meu amigo Porfírio fez-me uma pergunta. Recordo-me que na altura não lhe dei nenhuma resposta por aí além e a conversa não foi longe. Mas nos entretantos reflecti um pouco sobre o tema e cheguei a algumas conclusões filosóficas. Não tenho a presunção de serem conclusões universais, mas são pelo menos pessoais da minha pessoa. A pergunta era mais ou menos esta: “Achas que nós, adeptos de futebol de clubes diferentes, somos assim tão diferentes uns dos outros?”. A verdade é que, depois de pensar um pouco, normalmente durante o banho mensal, acho que sim, somos diferentes. Vou tentar explicar as minhas ideias, de uma forma tão concisa quanto possível. Como não posso analisar o que é ser adepto de todos os clubes nacionais, vou tentar analisar sobretudo o que é ser adepto dos três grandes.
Ser benfiquistaAté aos meus 7/8 anos dizia que era benfiquista. Não ligava nenhuma ao futebol, mas a maioria dos meus amigos eram lampiões e eu também pensava que era. Depois mudei para o outro lado da Segunda Circular. Hoje não me imagino como benfiquista. Na minha opinião os benfiquistas sofrem de arrogância de gigantismo. Não duvido que têm mais adeptos e mais títulos, mas não me agrada a conversa de que são a medida de todas as coisas. As tretas do Glorioso e da Catedral, que até a Comunicação Social adoptou, mostram parte dessa arrogância. Outra manifestação acontece quando proclamam que o Benfica há-de ser sempre o maior, independentemente do que o futuro traga. A frase “se o Benfica acabar, o futebol português também acaba” é outro marco lampiónico.
Há uns dez anos os benfiquistas gabavam-se de ter mais campeonatos que todos os outros juntos. Hoje em dia essa questão já nem se coloca. Também se orgulhavam de ter mais títulos internacionais que os outros, mas também nisso já estão a perder. Alguns ainda tentam atirar a Taça Latina para o barulho, como se fosse um título europeu, mas não pega. Outros desvalorizam as Supertaças, competição onde têm menos títulos que Porto e Sporting. Agora, à falta de resultados, temos o Guinness. O Benfica é o clube do mundo com mais sócios - até num forum na “Kicker Online” apareceu um lampião residente em Estugarda a chagar os pobres adeptos alemães com isso. Como se não soubesse(mos) que na Alemanha e em Inglaterra, os dois países com melhores assistências nos estádios, os sócios têm muito menos importância do que no sul da Europa. E depois temos o caso-Eusébio, que terá de ser sempre o melhor jogador português de sempre, mesmo que alguns façam melhor que ele.
Mas há que dizer que essa arrogância gigantista não é exclusiva do Benfica. Por isso eu não gramo clubes como o Real Madrid, a Juventus, o Bayern, o Liverpool, o Flamengo ou o Boca Juniors, entre outros. Quem ouve adeptos destes clubes a falar acredita que se tratam de entidades quase divinas, em que ninguém pode tocar, mesmo que os resultados em determinada altura contrariem essa grandeza. É óbvio que ser adepto do Benfica, ou dos outros clubes mencionados, é mais fácil: estão em maioria, têm mais títulos para mostrar, se comprarem o jornal ou ligarem a TV sabem que vão ter mais espaço que os outros, etc. Mas, curiosamente, em cerca de 100 anos de futebol em Portugal, o Benfica só dominou 20. Até aos anos 50 o Sporting tinha mais títulos (18 contra 10 no Campeonato de Lisboa, 4 contra 3 no Campeonato de Portugal e estava também em vantagem no campeonato nacional). Depois vieram os anos 60 e 70 que foram efectivamente dominados pela águia, e foi aí que se ganharam muitos adeptos. A partir dos anos 80 esse domínio foi sendo perdido para o FC Porto.
Outro aspecto é o orgulho da dimensão popular do clube. O Benfica é o clube do povo, do garrafão e do coirato, em suma, é um clube com uma vertente pimba muito pronunciada. É o clube onde se vê uma senhora a chorar de orgulho depois do Benfica ter eliminado o PAOK nos penalties, como se tivesse ganho a Liga dos Campeões. Onde se vê um senhor de muita idade chorar de alegria por ver o nome do clube no Guinness. Pode ser pitoresco, mas não acho piada a esse estado de alma, “seremos sempre os maiores por mais fundo que batamos”. Em resumo, penso que essa arrogância de gigantismo eterno se encontra apenas no Benfica, por isso penso que ser benfiquista não é igual a mais nada.
Ser portista
Ser adepto do FC Porto até aos anos 70 era um acto de coragem. O Kataklinsmann Sénior, por exemplo, tornou-se portista nos anos 50, por isso também deve ter penado muito, enquanto adepto. Nos últimos 20 anos tudo se tornou diferente. O Porto tornou-se no clube mais bem sucedido do futebol português e, do nada, começaram a surgir adeptos do FêQuêPê. Pessoas que eu não sabia sequer que gostavam de futebol, um dia acordaram com o dragon no coração. Ou seja, hoje em dia é muito mais fácil ser adepto do Porto do que de outro clube em Portugal. Há uns meses a “FHM” publicou uma reportagem sobre pessoas que mudaram de clube enquanto adultos. E 70 a 80% dessas pessoas mudaram precisamente do Benfica para o Porto. O que confirma a minha teoria de que a paixão por ganhar é maior do que a paixão pelo clube.
Há umas semanas Hélder Postiga deu uma entrevista a “O Jogo” onde dizia que os adeptos portistas eram muito mais exigentes do que os benfiquistas ou sportinguistas e que não tinham problemas em mostrá-lo aos jogadores. Acho isso uma situação perfeitamente normal. Se grande parte dos adeptos portistas só descobriram a sua paixão devido às vitórias do clube, é normal que não gostem nada de perder. Nos últimos anos também surgiram muitos novos adeptos do Lyon e do Chelsea. Compreende-se, o sucesso traz adeptos. Mas quando um clube está tão dependente dos sucessos para atrair paixão, corre muitos riscos. Tenho a certeza absoluta de que se um dia o Porto voltar a ser o que era até aos anos 70, uma quantidade enorme de adeptos fugirá a sete pés do Dragão. Resumindo, enquanto os benfiquistas consolam-se com a “verdade absoluta” de serem um colosso eterno, os portistas só se consolam com vitórias atrás de vitórias. Por um lado é bom haver sede de vitórias. Por outro quando a sede é muita e as vitórias deixam de aparecer, muitos vão matá-la noutro lado.
Ser sportinguista
Eu tornei-me sportinguista no período mais complicado possível. Estávamos em 1984 e mal sabia eu que teria de esperar 16 anos para saborear o primeiro título de campeão. Os meus colegas Mandamil e Beckenbauer, bem mais jovens começaram a sofrer quando o jejum já era enorme. Por outro lado, esperaram menos para verem o caneco em Alvalade. Passar tantos anos a ver o sucesso fugir, a ouvir piadas constantes sobre o meu clube e inclusivamente a ler que o Sporting estava a ficar mais perto do Belenenses do que do Benfica e do Porto, em termos de dimensão, não foi fácil, ainda por cima quando sou um adepto apaixonado de futebol e não apenas um curioso de fim-de-semana. Mas sinceramente nunca tive vontade de mudar de clube ou simplesmente de me borrifar para o futebol (OK, durante a era-Peseiro pensei nisso, mas não fui capaz).
Não sei se ser sportinguista é ser mais dedicado e fiel que os outros. Por um lado não temos a mania de grandeza do Benfica, por outro não somos tão dependentes das vitórias como os portistas. A verdade é que mesmo com quase 30 anos de quase secura de títulos, não se verificou grandes alterações no sportinguismo. As assistências no estádio estão ao nível das dos rivais e o número de sócios continua razoável, tendo em conta que não se fez nenhuma campanha recentemente. O que se pode dizer então dos sportinguistas, em comparação com os seus rivais? Acho que um facto positivo e um negativo: por um lado são mais razoáveis e mais pacientes, por outro são também mais conformados com o destino do clube, seja ele bom ou mau. Pessoalmente, gostando muito de ganhar, tenho sobretudo simpatia por clubes com características semelhantes ao Sporting, isto é, que variam muito entre momentos de glória e outros de desgostos profundos. Tudo isso mantendo sempre a fidelidade dos adeptos. Por isso sou fã de clubes como o Eintracht Frankfurt, o Atlético de Madrid, o Inter, o Saint-Étienne, o Newcastle... Podem chamar de masoquismo, eu chamo paixão pelo futebol e estar preparado para subir às nuvens, mas, sobretudo, para descer bem ao fundo do poço.
Nem tudo é perfeito no Sporting e há certas coisas com as quais não me identifico. Por um lado não sou rico nem monárquico, duas condições a que o Sporting normalmente é associado. E não pensem que não lamento, pelo menos a primeira condição. De resto, não gosto de ouvir os meus consócios dizerem que “somos diferentes”. Para já, é verdade, como tento demonstrar nesta longa posta. Mas sei que a intenção é dizerem “somos melhores”. Eu gosto de ser sportinguista, mas não me considero melhor pessoa por isso. Também não gosto quando se fala em futebol e os sportinguistas dizem que somos o segundo maior clube da Europa em termos de títulos nas várias modalidades, a seguir ao Barcelona. Mudar de assunto não abona em nosso favor. Prontos, não somos perfeitos.
Ser adepto
Um dos problemas do futebol português, como eu me farto de vincar, é de haver paixão sobretudo por ganhar. Por isso aqui em Setúbal sempre houve muitos pseudo-vitorianos que afinal gostavam mesmo é do Benfica. Nos últimos anos tenho vindo a descobrir que afinal têm um fraquinho é pelo Porto. Nunca mais hei-de esquecer um jogo da III Divisão alemã, em Agosto de 2004, entre o Fortuna Düsseldorf e o Eintracht Braunschweig. São dois clubes que já foram campeões alemães, mas que entretando caíram nas profundezas dos campeonatos nacionais. Mas estavam quase 7000 espectadores num ambiente frenético. No final, ao viajar de metro, deparei com centenas de jovens adeptos do Fortuna, que festejavam a vitória como se tivesse sido um título. Pensei: “Chiça, num clube que já foi campeão, festejam assim uma simples vitória na III Divisão?”. Isto, meus amigos, é ter paixão pelo futebol e por um clube, independentemente do destino que este tiver. Comparado com isto, ser sportinguista não é assim tão doloroso.
Com isto espero ter respondido à questão do caro Porfírio. Sim, somos todos diferentes. Um adepto do Fortuna Düsseldorf não pode ter os mesmos sonhos, enquanto adepto, que um do Bayern Munique. Tal como um do Atlético (se ainda houver mesmo adeptos do Atlético) não pode ter os mesmos de uma adepto do Benfica. E só por isso merecem toda a consideração e, de certa forma, inveja, por estarem dispostos a levar uma vida de sofrimento (futebolísticamente falando) em nome de uma paixão.