26 novembro, 2005

Desabafo e homenagem

O futebol português é uma tristeza. OK, eu sei que não descobri a pólvora, mas tinha de deixar aqui o meu desabafo. O motivo mais recente para a minha indignação aconteceu ontem, quinta-feira. Como é possível que nenhum canal televisivo tenha transmitido em directo o V. Guimarães-Bolton, da fase de grupos da Taça UEFA?

Aquilo que se passa em Portugal, na relação entre o futebol e a comunicação social, é o privilégio do chamado “interesse do público” em detrimento do “interesse público”. O “de” faz toda a diferença. O conceito de interesse público diz que é aquilo que interessa de forma objectiva e prática a uma determinada população. O interesse do público é aquilo que pode não mexer com a vida das pessoas, mas que suscita interesse, muitas vezes apenas voyeurístico. Trocando por miúdos, saber como vai o debate e a aprovação do Orçamento de Estado tem interesse público, saber quem foi o último a ser expulso da 1ª Companhia não tem interesse público, mas desperta interesse em muita gente.

No futebol passa-se o mesmo. Ontem o jogo do V. Guimarães era claramente de interesse público, ainda para mais sendo a equipa de Jaime Pacheco o único representante português na Taça UEFA. Vendo as coisas por baixo, no mínimo o Vitória é um contribuinte para o ranking português na UEFA. Nenhuma TV achou interessante transmitir o jogo. Por outro lado, os jogos do Benfica na pré-época, frente a equipas da 8ª divisão suiça merecem transmissão directa. Este é um exemplo de falta de interesse público: não há nada em disputa, há muitas substituições e as equipas utilizadas normalmente nem são as previsivelmente titulares, muitas vezes nem sequer os árbitros são a sério. No entanto, reconheço que provavelmente um Etoile Carouge-Benfica amigável tem mais telespectadores que um Guimarães-Bolton para a Taça UEFA. Mas não deixa de ser estranho, num dos países que mais jogos do campeonato transmite na TV (cinco em cada jornada, em nove possíveis), nenhum canal ter transmitido o jogo de ontem. E eu pergunto: será que um Boavista-U. Leiria ou um Belenenses-Marítimo tem mais audiência que um V. Guimarães-Bolton? Tenho dúvidas.

O problema não é só das TV’s, estende-se aos outros órgãos. Por exemplo, pegando nos dois jornais desportivos de Lisboa (de forma um pouco mais acentuada na Bola), o processo de escolha para uma manchete é mais ou menos o seguinte: 1) Arranjar alguma coisa de interessante do Benfica; 2) se não houver algo de interessante sobre o Benfica, tenta arranjar-se algo menos interessante sobre o mesmo clube; 3) se mesmo assim não for possível, tenta arranjar-se qualquer coisa interessante sobre o Sporting; 4) se não existir, procura-se um fait-divers sobre o Benfica e aí surgem os penteados de certos jogadores, os álbuns de família de outros... Só depois destas opções é que se pensa em fazer manchete com o FC Porto. Os outros clubes, bem podem esperar deitados.

Esta semana Jesualdo Ferreira foi questionado, pela milhonésima vez, sobre a candidatura ao título do Sp. Braga. A resposta do professor foi mais ou menos a seguinte: “Eu sei que para vocês seria interessante eu assumir isso. Mas de que me serviria, sabendo que vocês nos iriam tratar de forma diferente da que tratam os candidatos habituais?”. Tem toda a razão Jesualdo. Seria interessante comparar as manchetes dos desportivos na época 2000/01, em que o Boavista foi campeão e o Benfica acabou em 6º lugar.

No entanto, penso que a culpa deste estado de coisas não é só dos jornalistas. Os adeptos têm muitas responsabilidades. Eu, por exemplo, nasci e vivo em Setúbal, mas tenho uma simpatia apenas moderada pelo Vitória. Nem sequer é o meu segundo clube, apesar de ser sócio há mais de 20 anos. E quando se pergunta a uma criança de que clube é, primeiro pergunta-se se é do Benfica, do Sporting ou do Porto e só depois do Vitória. O mesmo se deve passar na maior parte das cidades do país. Mas mais grave, para mim, são aqueles adeptos desses clubes mais pequenos, que depois torcem por um dos grandes em segundo lugar. Ou seja, são do Vitória (ou outro clube de dimensão idêntica ou menor), mas contentam-se em lutar por objectivos modestos (manutenção, de vez em quando a Europa) e depois torcem por um dos grandes para a luta pelo título. E se o grande da sua preferência derrotar o seu clube não ficam propriamente tristes. Daí que seja complicado, quase impossível mesmo, qualquer clube chegar ao patamar dos três grandes, tirando uma ou outra época excepcional.

Dou um exemplo para mostrar que noutros países as coisas são diferentes. Eu sempre me interessei muito pelo futebol alemão e tenho uma grande paixão pelo Eintracht Frankfurt. Sendo um histórico da Bundesliga, o Eintracht tem sido na última década um clube que tem oscilado entre a 1ª e a 2ª divisões. Uma espécie de Vitória de Setúbal, portanto, descontando o triunfo na Taça e as duas participações europeias recentes dos sadinos. Mas eu acompanho o dia-a-dia do Eintracht, leio muitas opiniões em fórums, já assisti inclusive a jogos ao vivo e sei que os seus adeptos só pensam no Eintracht e não têm qualquer espécie de simpatia pelo Bayern, pelo Bremen, pelo Hamburg, etc. Por isso o Eintracht tem uma média de espectadores em casa de 45.000, num estádio para 50.000. Em Portugal, hoje em dia e tirando os três grandes, só o Guimarães e o Braga conseguem passar dos 10 mil em alguns jogos. Nem Belenenses, nem Boavista, nem V. Setúbal, nem Académica, para só falar em clubes históricos, chegam lá perto.

O último parágrafo é dedicado a um imortal do futebol, que hoje morreu fisicamente: George Best. Dos jogadores que nunca vi jogar ao vivo ou em directo, apenas assisti a alguns resumos na TV, Best só tem um rival no meu imaginário: Mané Garrincha. Curiosamente, duas figuras muito semelhantes: ambos extremos-direitos, ambos mágicos, ambos arruinados por causa do álcool. A grande diferença é que Garrincha teve a sorte de fazer parte do fabuloso escrete e Best a desgraça de ser norte-irlandês. Por isso fizeram carreiras bastante diferentes a nível de selecções. Muita gente recorda as “maldades” que Best fez ao Benfica em 1966 (vitória por 5-1 na Luz), em 1968 (4-1 em Wembley na final da Taça dos Campeões), ao serviço do Manchester United. Eu acrescento com agrado a “maldade” que o Sporting lhe fez em 1964, quando despachou o United da Taça das Taças com 5-0 em Alvalade, com Best em campo. A morte física de Best é, desculpem a frieza, um pormenor (excepto, claro, para a família e amigos). Porque aquilo que fez nos relvados garantem-lhe a imortalidade, como a qualquer artista de génio superior.

7 Comments:

At 5:17 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Mais um excelente post, meu caro e bom Amigo ("assumir é preciso", já se sabe.

Três notas:

1 - Excelente análise à psique do adepto do Beira-Mar, Vitória, etc.

2 – Ainda no domínio dos conscientes e inconscientes, apetece-me, um pouco à margem do post, salientar a paranóia jornaleira surgida a meio do campeonato que o Boavista foi campeão. Refiro-me à necessidade que os jornalistas têm de perguntar aos outsiders se se assumem como candidatos ao título. Mas é preciso preencher algum requerimento para se poder ganhar o campeonato?

3- Partilho essa tristeza de nunca ter visto George Best jogar.
Best figura, cativo, no meu onze mais místico, o onze constituído por homens que nunca vi jogar.
Dele conheço “apenas” uma dezena e meia de jogadas impossíveis, de fintas sacanas, reveladoras de um génio tremendo. A minha geração não o terá visto jogar, mas nele reconhecerá um irresistível símbolo de transgressão e desregrado talento, de desamor e afecto, de tédio e exaltação, de desconforto e estética, de inquietude e redenção. Um jogador maldito.

 
At 9:58 da tarde, Blogger André S. Machado said...

Concordo plenamente com o Jorge... Como é que o Guimarães é o único representante português na UEFA e nenhuma TV se interessa em transmitir o jogo? Será que o Zenit-Sevilla é mais importante para o futebol português?
Em relação aos adeptos dos clubes mais pequenos: Estou de acordo e conheço bem a realidade setubalense como o Jorge e posso afirmar que muitos vitorianos torcem pelo Benfica todos os Fins-de-Semana. Claro que há excepções mas no geral as pessoas têm sempre vergonha de dizer que são do Estoril, Beira-Mar, Desp. Aves, etc.
É, também, com grande tristeza que vejo partir George Best mas como o Jorge disse, e muito bem, a sua memória perdurará para sempre em Manchester e na Europa do futebol!

 
At 9:45 da tarde, Blogger Tiago Gonçalves said...

Realmente é um fenómeno interessante o "duplo clubismo": é habitual ver os adeptos que torcem todas as semanas pelo clube da terra insultarem os jogadores dessa mesma equipa sempre que o grande da sua preferência os visita. Em Setúbal,por exemplo, muitos vitorianos trocam o verde e branco pelo vermelho 2 vezes por ano, como o Francisco já disse. Cenário contrário encontramos em Espanha,Inglaterra ou França, onde um adepto do Bétis é só do Bétis, um adepto do Everton é só do Everton, um adepto do Bordéus é só do Bordéus...
Grande Best, que em tempos pôs o estádio da Luz a aplaudir o Manchester de pé, enquanto um gigante Benfica de Eusébio e Coluna era cilindrado.

 
At 4:51 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Muito contentes ficais vós com as vitórias do Manchester sobre o Benfica... lol Mas adiante... Sem dúvida que em Portugal existe o duplo clubismo (que não é o meu caso... que se lixe o beira, sou é do benfica!) Tirando os adeptos do Guimarães, poucos são os que não têm também simpatia por um dos grandes. Grande post... Parabéns!

 
At 5:02 da tarde, Anonymous Anónimo said...

quanto ao assunto da ignorância do VSC na taça UEF por parte das Tv`s.isso só me vem dar razão.Fogo
e metralha sobre elas.Alá é grande.Viva o VSC

 
At 6:11 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Tenho reparado que a malta do sporting tem sempre que ir buscar a dupla recordação dos jogos que o Best fez contra os clubes de Lisboa.
Fica-vos bem.

 
At 1:05 da tarde, Blogger José Cavra said...

Eu tenho pena que o meu PC tenha dado o pifo!
que nojo de PC. logo agora que ia coroar Ronaldinho Gaúcho, rei do futebol mundial.
Culpa delas!

 

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